Escola Itinerante de Teatro: uma experiência de teatro comunitário escolar
- ciaestreladalva
- 6 de abr. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 8 de abr. de 2022
Por Lígia Helena e Paulo Gircys, da Cia. Estrela D´Alva de Teatro.
As cartografias afetivas que desenham os territórios de atuação da Cia. Estrela D´Alva de Teatro nunca foram retilineas. Cruzam-se tanto às avenidas quanto às vielas das tantas outras cartografias rabiscadas pelos seus integrantes. No maior cruzamento deste mapa está a via da pedagogia. Via de mão dupla, processos artísticos redesenham processos pedagógicos, e vice-versa.
Em 2017, o Teatro Singular, grupo de teatro estudantil que Paulo Gircys orienta em Santo André, participou do IX Festival Mundial de Teatro Adolescente Vamos que Venimos, em Buenos Aires. Voltou bastante movido com a potência do encontro e com um convite para ministrar oficinas na primeira edição do VQV no Chile como Cia. Estrela D´Alva.
Ali Paulo e Lígia vivenciaram duas situações que despertaram um desejo que já estava lá: o aprofundamento dos projetos pedagógicos do grupo. A primeira: ministramos uma oficina em uma Escola Mapuche - a Escuela Rural Vega Larga, em Lautaro - para mais de 60 alunos da escola e outros 50 participantes do festival. A improvisação da imagem de um enterro nos apresentou as variadas possibilidades de leitura de um rito universal a partir de culturas diferentes e o quanto o teatro feito em cada comunidade pode ter especificidades em sua narrativa.
A segunda: conhecemos o grupo Cuatro Elementos, coletivo que trabalha com interlinguagem num espaço-casa agindo diretamente no bairro em que vivem em Temuco, e que, em paralelo, atua fora da sua comunidade com o projeto de uma Escola Itinerante, instaurando processos artísticos em comunidades Mapuches.
Sentados numa rodoviária no sul do Chile, no caminho de volta pra casa, sabíamos a estrada que queríamos seguir: nascia a Escola Itinerante de Teatro.
Nosso território? Santo André, sede da Cia. desde 2005. Como grupo sempre tivemos ações de cunho pedagógico, mas conectados ao processo de pesquisa e circulação dos espetáculos, ou seja, sempre havia um objeto de aproximação, agora nos desafiamos a permitir que o próprio território fosse este objeto.
Sabíamos da potência da juventude escolar e tínhamos interesse em borrar um pouco mais as fronteiras entre educação e cultura, optamos então por atuar em uma escola pública. Tínhamos o desejo de pesquisar o conceito de Teatro Comunitário que visitamos no Chile: um teatro feito a partir da história, da memória, das narrativas, da geografia do lugar e das pessoas que nele habitam, que tem como principal objetivo o encontro criativo e o entendimento da identidade cultural destas pessoas: entender o passado comum, para habitar o presente e, a partir dele, criar o futuro.
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Em 2018 o projeto foi selecionado para participar do Programa Territórios de Cultura, da prefeitura de Santo André. Durante 6 meses atuamos na EE Amaral Wagner com duas turmas em período de contraturno.
Atravessadas as burocracias escolares, os portões visíveis e invisíveis que dificultam a relação entre educação e cultura e que também estruturam a vida escolar dos estudantes, iniciamos as aulas com quase 100 inscritos.

Foram jogos, improvisações, rodas, diálogo horizontalizado, espaços de fala sem receio, empatia, identidade e reconhecimento que foram construídos e abriram a porta para alguns temas bastante internos daquela comunidade. Foi no debate sobre a relação entre as turmas regulares, entre os períodos letivos, entre alunos e professores, coordenação e funcionários, pais e filhos, e Estado/Secretaria de Educação e comunidade escolar que percebemos que estávamos criando um outro teatro comunitário, não de vizinhos de uma comunidade de moradia, mas de uma comunidade escolar. Éramos agentes criadores de um fórum de olhar, crítica e proposição sobre a estrutura da escola.
“O que se quer, aqui, é problematizar as formas de operar dessas áreas do conhecimento humano: de um lado, a arte como criação, fissura nos estratos da cultura; de outro, a escola, que opera sobre conhecimentos estratificados, porém, colocando-os em suspensão, profanando-os, realizando uma transposição didática para que se possa estudá-los, experimentá-los.”
- Marcelo Gianini
Um dos fatores potencializadores do processo foi de que não levamos conceitos prontos. Veja, não se tratou de se eximir da responsabilidade de mediação, orientação ou condução daqueles processos, mas sim de criar espaços de crítica e reflexão para educadores e alunos sobre o que constituía o cotidiano da escola e suas contradições.
Uma vez pedimos aos alunos e alunas que criassem uma foto de uma lembrança de algum acontecimento nos corredores da escola e que essa foto fosse montada com seus corpos no espaço em que ela ocorreu. Um grupo reviu uma situação em que um aluno deu um soco na vidraça de uma porta. Acontece que a fotografia foi feita diante de uma porta já sem vidraça e diante de uma sala em aula. A professora abriu a porta. Estranhamento. O que era realidade o que era ficção? Antes que os alunos levassem bronca intervimos explicando o exercício. Mas, reverberou pela escola por mais de uma semana o acontecido.
Da análise da escola, da aproximação com a história e a narrativa de cada aluno e aluna, da articulação de aulas em outros espaços como a Universidade Federal do ABC e a Escola Livre de Teatro, de ter ido a espetáculos como “Os Livros de Jonas” (Teatro da Conspiração) e da primeira edição do VQV Brasil (as cartografias seguem se cruzando); as criações na sala de aula foram se aprofundando, outros temas emergentes aos alunes foram surgindo: depressão, adolescência, ansiedade, gênero, raça, educação e cultura, política, etc.
“O mais importante de tudo é aprender a estar de acordo.
Muitos dizem sim, mas sem estar de acordo.
Muitos não são consultados, e muitos
Estão de acordo com o erro. Por isso:
O mais importante de tudo é aprender a estar de acordo.”
- O Grande Coro in Aquele que diz sim e aquele que diz não
Bertolt Brecht
A meritocracia que responsabiliza o jovem por ser efetivo, eficiente, foi dando lugar ao entendimento do contexto social que altera nossas individualidades. A enorme quantidade de aulas vagas, o pátio arborizado e ensolarado que não se pode acessar porque alguém pulou o muro para ‘matar aula’, a mesa de estudo que foi retirada porque alguns jogavam truco, as salas trancadas no intervalo porque não haveria que as fiscalizasse, a biblHannah Arendt / José Sérgio Fonseca de Carvalho. - 1. ed. - São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2017.
BRECHT, Bertolt. Teatro completo em 12 volumes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
GIANINI, Marcelo. Diálogo de surdos: reflexões acerca do ensino de teatro na educação básica em Alagoas (e suas possíveis reverberações em outros contextos). 2016. Tese (Doutorado em Pedagogia do Teatro) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. doi:10.11606/T.27.2017.tde-20022017-143131. Acesso em: 2020-06-16.
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